quarta-feira, 23 de março de 2011

A velocidade máxima


Há tempos uma amiga minha, muito minha amiga, é tão minha amiga que é a minha mãe, comprou um carro novo. Novinho em folha, lindo, cinzento que é uma cor que fica bem com qualquer cor de alcatrão mas horrível para que seja visto fácil e rapidamente pelos outros automobilistas. Enfim. As escolhas não são muito variadas no que diz respeito aos carros. Deve ser uma coisa cultural mas de facto os carros em Portugal ou são pretos ou cinzentos, na maioria das vezes. Há variações claro, mas normalmente são escuros. O dela não fugiu à regra. Cinzento escuro metalizado. Mais caro portanto.

Ela que estava habituada ao carro anterior, cheio de barulhos e vícios dos anos que tinha, no dia em que foi buscar o carro novo pediu-me para que eu a acompanhasse. É normal. Até eu fico nervoso ou excitado quando adquiro um carro novo. Ela fundamentava e muito bem o seu receio pelo facto de ainda não conhecer bem as subtilezas da nova máquina e por isso sentia-se mais confiante com a minha presença. Uma das minhas especializações profissionais é a de formador de condução defensiva. Lá fomos. Era um modelo mais evoluído que o modelo anterior que ela tinha, mais confortável, com uma direcção assistida mais leve, com vidros automáticos, com leitor de Cds, com ABS e mais uma série de siglas que é preciso um curso para conseguir entender aquilo tudo. Cheirava a tinta fresca, o carro.

Na noite a seguir, vinda de Setúbal e já quase a chegar a casa adormece na auto-estrada e enfaixa-se na traseira de uma carrinha do pão. Numa subida na A5... sorte, pura sorte. Não lhe aconteceu quase nada, tinha o cinto. A carrinha quase ficou intacta. O carro novo ficou todo partido, a parte da frente. Há coisas estranhas na vida das pessoas. O primeiro carro novo que ela comprou a pronto e com um desconto inexplicável, deixou de o ser no momento em que com tanto conforto, a minha mãe adormeceu. É assim. Acontece a qualquer um. Coitada, tive pena dela. Mas ela não se vai abaixo facilmente e lá recuperou, pagou o arranjo do carro e está como novo desde então.

Há tempos o director geral da associação das escolas de condução foi apanhado na auto-estrada a 210 à hora. Veio para a televisão explicar-se que era uma injustiça ser multado pois conduz um veículo extraordinário cheio de siglas que no fundo e na cabeça dele significam que “pode” conduzir àquela velocidade sem qualquer perigo. Li passados uns tempos e sobre o mesmo assunto que não pagou a multa pois conseguiu um documento do fabricante que assegurava que o veículo era “à prova de bala”, subentenda-se, extremamente seguro. Se a lei diz que a velocidade máxima nas auto-estradas é 120 à hora, existem razões muito fortes para que assim seja. E que eu saiba as leis são iguais para todos. Ah! mas isto... Ah! mas aquilo... Não interessa. As leis são iguais para todos.

Talvez me ocorra imputar a responsabilidade do excesso de velocidade do carro ao seu fabricante ou aos reponsáveis que deixam comercializar viaturas que andam a mais de 120 à hora. É que de facto os carros estão cada vez mais confortáveis e cheios de siglas. Mas quem os conduz são pessoas e as pessoas levam mais tempo a evoluir que os carros... Dava-me jeito ter um carro que acelerasse dos 0 aos 100 em três segundos e que fosse até aos 160 por causa de uma ou outra ultrapassagem. O que se passa com os carros é uma loucura e não faz sentido nenhum. Algo está errado. Não fabriquem carros que andam a 200 à hora. Não os vendam. Não os comprem. Parem. Parem tudo. Dá a sensação que está tudo parvo, credo!

Se fosse eu a governar todos os carros do Estado tinham de ser amarelo fluorescente e nenhum podia andar a mais do que 120 km à hora... espera... o que é que eu pensei?... espera...

Beijinhos e essas coisas,

quinta-feira, 17 de março de 2011

O coração tem cérebro


Há tempos vi na televisão um documentário no “National Geografic” sobre uma descoberta científica impressionante. Tudo começou por causa de um transplante do coração. Um homem que era uma “besta”, que não ligava nenhuma à mulher e passava a vida no bar, depois de receber o coração de alguém que tinha falecido (lá deu para se aproveitar o dito cujo), e sem que houvesse razão aparente, passados alguns meses, deixou de ir ao bar e começou a ficar em casa para fazer companhia à mulher. Começou a escrever poemas desalmadamente e, para contentamento da mulher, voltou a olhar para ela com desejos que há muito não existiam entre os dois. A mulher preocupada com o novo comportamento do marido foi alertar o médico. Foram ver quem tinha sido o dador e era um poeta, um artista que escrevia, pintava e tocava piano. Impressionante.

Pois é! Eu, algo me dizia, que devia dar mais atenção ao meu coração. Não foram poucas as vezes na minha vida em que “algo me dizia para”, ou “parece que estava a adivinhar”, ou “estava mesmo a ver”, ou “estava a pensar em ti agora mesmo. - Pois! Mas quem ligou fui eu!” (isto a propósito da quantidade de vezes em que eu telefono a alguém que me diz que estava a pensar em mim naquele instante). De facto, tenho a sensação que algo está errado na sociedade em que vivo. Cresci com a constante opinião e até certeza, muitas das vezes, de que o coração é simplesmente uma bomba. Que não devo chorar. Que não devo sofrer. Que devo conter as emoções e de que, no fundo, não devo “escutar” o meu coração. Fui treinado para anular o que o coração me diz. Na escola, na família e através de vários ensinamentos sociais ou religiosos. E já dei por mim, inconscientemente a passar essa mensagem aos meus filhos. É horrivel.

Ora, cientificamente, e ao que parece, o coração tem um cérebro. O tal programa que vi mostrava o estudo feito sobre o caso e outros. Chegaram à conclusão que são inúmeras as vezes em que, quando confrontados com determinadas situações, o primeiro “orgão a reagir” é o coração. E que é o coração que vai informar o cérebro. Os olhos vêm, informam o coração que descurtina a mensagem e a reenvia para o cérebro devidamente trabalhada. Infelizmente fomos formatados para não darmos crédito às mensagens (linguagem) do coração. São séculos e séculos de uma cultura tacanha e curta que fez dos humanos aquilo que somos. Umas máquinas de anulação e destruição e em última instância do planeta em que vivemos. Comemos demais. Tratamo-nos mal. Tratamos mal os outros e sem que saibamos porquê somos assim. Claro que há excepções, como em tudo.

Ainda não temos o distanciamento temporal suficiente para entender a revolução global planetária que está a acontecer. Mas sem que ninguém o prevesse (que agora é cada vez mais impossivel prever o que quer que seja) a internet veio colocar em causa o “status quo”. Nada é definitivo nem garantido. Nada é verdade nem mentira. Tudo é possivel. Pela primeira vez na história da humanidade estamos a tentar perceber o que de facto somos. Quebrou-se a noção de que somos cérebro e que é isso que nos distingue dos outros seres vivos. Não é o fim do mundo (como alguns teimosamente, agarrados pelo medo, perconizam) mas antes a sua transformação. Da génese do ser humano.

Que sorte a minha estar a viver esta experiência e que sorte estar vivo. Finalmente, a ciência, por “a mais b” mostrou-me que não estou louco. Que simplesmente tenho de saber “ouvir” o meu coração. Pois nunca ninguém me ensinou a sua linguagem.

Beijinhos e essas coisas,

terça-feira, 1 de março de 2011

Dr. Quixote


Há tempos dirigi-me a uma repartição pública. Entrei e esperei. Na sala estavam três pessoas. Comigo do lado de cá do balcão eramos quatro. Um homem fardado dedilhava num teclado, enquanto que as senhoras estavam as duas sentadas atrás das respectivas secretárias. Esperei. Enquanto esperava pensei porque é que nem olharam para mim quando entrei. Enquanto continuei à espera também pensei que ali estava espelhado o que é o funcionalismo público. Que é por causa destas e de outras que o país está como está. Enfim, sabem como é, quando se espera nas repartições públicas pensa-se muito no funcionalismo público e no estado da nação. Mas atenção, há sempre excepções à regra, sempre.

Finalmente, e como nenhuma das três pessoas me perguntava nada, perguntei eu - “É possivel falar com a pessoa responsável?”. O homem fardado foi como se de uma corrente de ar se tivesse tratado. Uma senhora respondeu – “Com quem deseja falar?”. E pronto. A partir daqui qualquer dialogo é uma questão de sorte. A partir do momento em que a resposta à minha pergunta é outra pergunta passa-me pelos olhos as imagens que vou vendo daqueles países árabes em que parece que as coisas funcionam de uma maneira estanhamente parecida com corrupção. Não sei explicar mas é sempre a sensação estranha que tenho.

“Pretendo falar com a pessoa responsável”, repeti. E a resposta teve o peso de décadas de ditadura, fascismo, ignorância, imbecilidade, corrupção, pobresa, e mais uma série de adjectivos próprios de uma sociedade tacanha e pequenina, imensamente pequenina. Mas atenção, não se pense que vivemos num sistema assim. Não. Agora vivemos em total liberdade, vivemos num sistema democrático aberto. Os meus filhos lá sabem o que é depender da boa disposição do funcionário público, ou da relação familiar, ou da cor política, para se conseguir obter qualquer coisa do estado? Eles nem imaginam o que era esse tempo, curiosamente parecido com o que se vai vendo ultimamente na televisão por causa dos protestos de rua contra esses sistemas do norte de África, que ao que parece, estão a tentar alterar, coitados. Adiante. Dizia eu que a resposta teve o peso de uma cultura com décadas e que quer queiramos quer não ainda persiste – “O doutor não está.”

Ultimamente tenho-me lembrado do D. Quixote, à falta de melhor, um castelhano. Tenho tentado lutar contra “moinhos de vento” que não se vêm mas existem. Estão lá. Esta senhora é um enorme “moinho de vento”. Com a sua resposta aplicou-me um golpe que só não foi mortal pois a capacidade dela é relativa, senão eu teria certamente desaparecido no momento em que interferi no decorrer pacato da sua vida profissional. Mas eu, armado em D. Quixote, perguntei-lhe em que é que o doutor era formado pois assim eu estaria mais bem preparado para falar com ele. Enquanto ela me observava, olhos nos olhos sem pestanejar, eu continuei explicando-lhe que o assunto que me levava ali seria abordado de maneira diferente caso o doutor fosse formado em contabilidade, literatura, psicologia, marketing, sei lá. “Pois. Mas o doutor não está. Terá de vir amanhã”.

Esta tradição arcaica portuguesa de nos referirmos às pessoas por doutores, engenheiros ou majores é incompreensivel para muitos europeus. Já os norte-africanos entendem perfeitamente. A mim o que me surpreende é que aquela senhora se anula voluntariamente e em público. É uma estranha relação de convivencia conivente entre os que são qualquer coisa e os que não são qualquer coisa sendo outra coisa qualquer. Para aquela senhora a responsabilidade de tudo é do doutor... para o bem e para o mal. E ela é assim uma espécie de Pilatos, sempre com as mão desinfectadas. No entretanto eu sou assim uma espécie de “o que é que este quer a esta hora?”.

“Dói-me o rabo, Sancho. E a ti?”
“A mim também mestre, ela era rija”.
“Voltamos cá amanhã?”
“O mestre é que sabe mas eu não vinha. Não vale a pena, ela é má.”
“Ok. Vou ligar os cavalos e vamos embora.”
“Ó mestre... eu hoje posso ir consigo? Ando cansado.”
“Está bem podes. Mas senta-te atrás, aperta o cinto e abre a janela. Tens mesmo de tratar desse cheiro dos pés pá. Isso já não se aguenta.”

Beijinhos e essas coisas,